Estevan Bartoli*
Quem vive no arquipélago urbano de Parintins sente no mês de junho que há uma “energia no ar”, uma esfera coletiva derivada de um pacto silencioso, que não é assinado entre as pessoas simples que realmente constroem o festival (mas é apropriada pelo “deus” capital). Essa psicosfera (como dizia Milton Santos) é fruto de um esforço social feito de trabalho humano i-material, que mesmo onde artistas e populares não tenham assinado “contrato” algum, fica latente no ar a “seiva elaborada” desse pacto silencioso parintinense:
“daremos o máximo de nosso esforço, pois a festa é muito do pouco que resta para aliviar nossa lida tão sofrida” [...] “faremos bonito em tudo, do sorriso acolhedor à garra dos gritos loucos do apaixonado torcedor” [...] “faremos bonito, pois parece que não temos mais poder em nada nessa ilha, nem mesmo no politizado boi, mas temos o poder simbólico de fazer a festa indescritível” [...]
As críticas dos rumos que os bumbás tomaram, e o próprio sentido em que a festa se transformou, são temas caros para nossa cidade. Exploração, corrupção, espetacularização para ser vendida como imagem ao capital, apropriação da cultura como elemento mercantil, etc., etc., etc... O boi está na UTI mas nem percebemos. O que mantém o “oxigênio” do boi ligado nessa UTI é o pulsar popular que insiste em manter o sangue quente correndo em suas veias, pois o boi faz parte da historicidade e subjetividade de cada parintinense, cada um à sua maneira, e até mesmo da minha que vivo aqui apenas há uma década. Tenho minha própria construção afetiva do boi-bumbá: utópica e contraditória.
É um pulsar utópico, que remete a tempos ribeirinhos cada vez mais urbanos, remete a tempos lentos das famílias e seus amores pelos interiores, comunidades, aldeias ou palafitas solitárias que teimam em fincar suas “pernas-estacas” nas várzeas. É um pulsar que ainda deseja o rufar do tambor trazendo a memória, pois faz parte de cada história, de quem veio do interior! A utopia que nos faz caminhar, também nos faz remar, singrar e talvez retomar a qualidade do mundo rural que foi deixada para trás. Plantios, peixe farto, roçados produtivos, morada tranquila... Ou sonhar ter uma Moto e uma casinha na “invasão” se tornou a única opção?
Contradição
A energia da contradição vem da situação sofrida do povo da ilha, com péssima qualidade de vida, com água ruim que sai da torneira, o cheiro azedo da lixeira, e a lama na sola da chinela que vem das ruas abandonadas. A contradição é uma situação curiosa, pois vem da insistência (mesmo alienada) de que é preciso se agarrar no pouco que resta, e se for preciso, sair de bajara, rabeta, batelão ou canoa, sonhando concentrado como um cãozinho na proa, que bons ventos da mata ainda nos vão inspirar.
A energia da contradição vem da economia estagnada, do alimento que não produzimos, do descaso dos que nos desgovernam... e na minha viola desafinada aqui na periferia da lama fico cantando:
“Porto de juta, tu nunca será Paris... Comer croissant com farinha não te faz feliz!”
Parintins clama por mais espaço cidadão a esse pulsar utópico. Que as novas gerações que comem salsicha, calabresa e ovo possam se conectar às velhas que aos poucos se calam, com espinho em sua goela entalado pois não entendem o que os jovens tanto olham para o tal de celular: e contraditoriamente não sabem mais navegar!
Esse velho modelo de “democracia” e seus coronéis de barranca, farão de tudo para domesticar e calar o pulsar utópico, impedindo que a energia da contradição se organize. Nos resta sentir essa energia como uma bomba acústica que sai do Bumbódromo: BUUUMMMMM !!!!! O tambor da mata pede revolução!
* Professor da Universidade do Estado do Amazonas, no Centro de Estudos Superiores de Parintins, geógrafo, artista e educador.
Edição: Floriano Lins