Fátima Guedes*
Marias
Abram a janela pra vida
Abracem a manhã que nos chama
E acendam esta chama para além das barreiras.
Há Marias sem sonhos
Sem vez, sem voz e sem dias...
São Marias
De todas as raças, cores, jeitos...
Teçumes de fêmeas histórias
Rompendo coleiras, silêncios, medos e dores.
Das Dores superam os lamentos
Celebram Vitórias, Auroras
Esperanças e Glórias...
Piedade não quer dó
Seu Penhor é a luta
É a lei, a Liberdade...
E a voz da Mátria Brasil
Agita as águas, florestas, campos, praças
Derruba deuses, senhores, chefias, conceitos patriarcais...
Proclama, por fim,
A defesa da vida, da Terra e da Paz.
A canção das Marias avança no mundo, no tempo, na história. Mistura-se com outras canções e quebra padrões machistas, patriarcais anunciando autonomia e tempos de libertação a todas as categorias desvalidas e invisibilizadas.
São Marias em diversidades indistintas: ansiosas, sonhadoras, feridas, companheiras de lutas, de ruas, de banzeiros, de cirandas, de junhos com e sem festivais...
Lá vão Elas arengando nas rodas, nas ruas, nos templos, nas cozinhas, nos mercados, colorindo-se de branco, preto, vermelho, azul, roxo, lilás - cio de cores e resistências sobre brechas forjadas entre cercas e muralhas.
Sob cores e arengagens insistem e resistem: gozam com o sol, brincam na chuva, falam com as flores, acalantam palavras, palavreados, pão, rebeldias e atiçam a chama que inflama o feminino audaz... Recriam Olgas, Clarices, Simones, Claras, Rosas, Dandaras, Fridas, Giocondas, Margaridas, Dorothys, Violetas, Marielles, Madalenas... e incorporam Deusas Ceutas imortais!
Enfim, sintonizadas com direitos por respeito e igualdade universais seus legados atravessam séculos, abraçam povos irmanados, ativam o tempo silenciado sobre o agora e trazem respostas altivas que nos devolvem a voz.
Toda essa cantoria Mariana retumba há séculos. No entanto, somente há 50 anos, após martírios, muito sangue derramado e clamores mundiais, finalmente em 1975, a ONU reconhece o 8 de março - Dia Internacional das Mulheres.
Para atiçar o diálogo com nossas memórias matrifocais é justo trazer a público as bases de todo o processo inquisidor imposto às mulheres: dogmas exploratórios, mercantis e religiosos. Tais padrões carimbaram as mulheres seres dependentes de homens e, portanto, submissas a toda e qualquer determinação imposta por estes.
Consta em Gênesis (2:23) que Eva fora feita da costela de Adão... “E disse Adão: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; será chamada mulher, porque do homem foi tirada”. E, assim, Eva recebe da autocracia machista o pontapé inicial da violência cujos efeitos se estendem aos dias atuais às suas filhas e às filhas de suas filhas.
Por esse impositivo ideológico registrado em Gênesis, as mulheres são julgadas como inferiores, fracas, passivas, receptoras, reprodutoras e, portanto, devem ocupar espaços de submissão como reprodutoras da cultura patriarcal: trabalho doméstico invisibilizado, objeto de prazer dos machos e, por fim, parideiras. Quanto aos homens são rotulados melhores, superiores e, assim, ocupam espaços de produção, de poder e de chefias generalizadas.
Uma vez que a vida das mulheres surgiu “dos ossos e da carne masculina” (segundo dogmatismos semitas, hebraicos e cristãos) as mulheres devem total submissão aos homens os quais ditam as regras e respectivas funções e papéis: coisas de homem e coisas de mulher.
Em meio a toda essa balbúrdia sistêmica religiosista que domina consciências, mundos, e espaços transformando mulheres em objetos e mercadoria, a livre espiritualidade das Marias questiona: Deus é macho?
Arranjem outro discurso pra justificar o massacre às mulheres! Foto: Floriano Lins
Em nosso original entendimento, Deus é Espírito, portanto, agrega indistintamente em sua natureza divina: mulheres, homens, culturas, diversidades de gênero e espécies. Em “O Mistério da Ética”, Alberto Brum evoca a Supremacia Espiritual como “Consciência Universal, Potência Cósmica”, a unicidade ativa em todas formas e jeitos de ser, de existir sem separatismo de gênero, matéria, classe, raça/etnia, credo... É a soma: D+EUS em sintonia com o Direito Universal de Ser o que se É em natureza e essencialidade.
Por essa via de reflexão, a arengagem das Marias entoa o refrão: Arranjem outro discurso pra justificar o massacre às mulheres!
Do que nos impuseram e captamos sobre os 10 mandamentos da bíblia cristã, o segundo afirma: “Não usar o nome de Deus em vão!” É incoerência! Hipocrisia! Feminicídio!
E segue o cantarolar das Marias retumbando sobre corações e sobre as consciências daquelas e daqueles que se dizem representantes do povo; afinal, mulheres são a maioria do povo!
Cantem, Marias! 8 DE MARÇO FECHADO! A GENTE FAZ FERIADO!
Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.