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Cativeiro Afetivo

“Eva fora feita da costela de Adão... E disse Adão: Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da minha carne; será chamada mulher, porque do homem foi tirada” Gênesis (2:23)

Redação
Por: Redação Fonte: Redação
03/07/2025 às 18h19 Atualizada em 03/07/2025 às 18h32
Cativeiro Afetivo
Ato feminista pede justiça por Auriene Paiva, acadêmica de Pedagogia acusada pela morte do namorado. Foto: Floriano Lins

Fátima Guedes*

 

A citação em Gênesis registrada e massificada durante a EC (Era Comum)* há três mil e quinhentos anos - a dita “idade do bronze” e do “ferro” -, nos permite, a partir de uma profunda leitura crítica, problematizar o contexto e seus reflexos sobre a vida das mulheres.

Conforme apontam os registros históricos, a dominação e respectivas violências às mulheres têm como base os períodos em referência. Em contraposição às primeiras comunidades humanas (150.000 anos aproximadamente) conhecidas como sociedades matrifocais, mulheres e crianças eram naturalmente reconhecidas, respeitadas e protegidas pelos homens. Mantinham íntimos diálogos com a Mãe Terra, com o poder curativo das ervas nos cuidados com doentes e moribundos. Eram também parteiras, benzedeiras, sacerdotisas, profetizas, encarregadas das festividades de plantios e colheitas, dos ritos de passagem, das bênçãos, das proteções, das previsões e dos cultos aos mortos.

Com a chegada dos colonizadores, o cenário sofrera profundas intervenções patriarcais e mudanças bruscas com afetação às mulheres e a todas as fêmeas do Planeta, incluindo a Mãe Terra. Os homens se tornam proprietários da terra, de escravos, de vulneráveis e passaram a dominar as mulheres: são excluídas do processo produtivo e condenadas à função reprodutora e escravas do sistema. Embora herdeiras, os próprios bens passam a administração dos homens. Se era rica, pagava os privilégios com a subordinação.

A realidade citada se reflete aos dias atuais: grande maioria de mulheres acreditam e submetem-se ao dogma que faz referência a Adão e ingenuamente aceitam relações abusivas que se transformam em rotina viciosa consolidando-se em cativeiro afetivo - condição de mulheres vítimas de abusos, violências e dependências afetivas.

Em princípio, o cativeiro afetivo aprisiona não apenas mulheres empobrecidas, analfabetas, analfabetizadas; também mulheres de classes médias e altas que silenciam violências como meio de garantir privilégios, posições sociais e outras ilusões... É a condição de milhares de mulheres oprimidas, dependentes dos ditos cativeiros. Um olharzinho sobre noticiários antigos e/ou recentes testemunham os fatos.

Por esse viés, as mulheres são eternas devedoras; logo, o cativeiro se fortalece sob silêncios, medos e inseguranças. As constantes ameaças a “aprisionadas”, assim como os estratégicos teatros fantasiados de afetos com flores, presentes, beijos, abraços e sexo cegam e anulam o discernimento das cativas eliminando-lhes autonomia e liberdade. Tal aprisionamento é secular, haja vista, que “os ossos e a carne das mulheres foram tirados de Adão”, conforme afirmações patriarcais.

O caso envolvendo Auriene da Silva Paiva, a jovem parintinense, estudante, acusada pela morte do namorado na última sexta-feira de junho, reflete o contexto em pauta. Auriene, conforme vários testemunhos, enfrentava um relacionamento abusivo, porém sem forças e autonomia para denunciar e se libertar. Certamente aprisionada aos respectivos padrões.

O caso clama por JUSTIÇA! E por falar em JUSTIÇA, até o presente momento, Auriene não foi ouvida pelas competências jurídicas de Parintins, (terra do Boi-Bumbá) há 369 km de Manaus. Segundo Jürgen Habermas, em “Teoria da Democracia”, o conceito Justiça vai além do institucionalismo de estado: visa promover a autonomia comunicativa de atores sociais, onde as decisões são tomadas de forma coletiva e participativa. Refere-se à ideia de equilíbrio, retidão e imparcialidade, tanto em termos de aplicação da lei quanto ao tratamento equitativo.

Sob tais provocações, forças coletivas e participativas cobram Justa Intervenção dos órgãos competentes no sentido de trazer a verdade e ao mesmo tempo, de proteger a Jovem, assim como tantas outras mulheres em condição de submissão patriarcal, de outras violências.

Impossível silenciar! É a ética universal humana* que nos cobra intervenção! Somente na união dos comuns se constrói a legítima comunidade e se chega à libertação. 

Justiça por todas as mulheres vítimas do cativeiro patriarcal!

 

Falares de Casa

Era Comum – O mesmo que d.C. (depois de Cristo); intuito de neutralizar referências religiosas.

Ética Universal Humana – “Luta em favor dos famintos, dos destroçados, das vítimas da malvadez, da gulodice, da insensatez dos poderosos, quanto a briga em favor dos direitos humanos, onde quer que ela se trave!” (FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação. UNESP/SP, 2000. 

 * Maria de Fátima Guedes Araújo. Caboca das terras baixas da Amazônia. Educadora popular, pesquisadora de saberes popular/tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela UERJ (Projeto Rondon/1998). Com Especialização em Estudos Latino-americanos pela Escola Nacional Florestan Fernandes/ UFJF. Fundadora da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM) e Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular em Saúde (ANEPS). Autora das obras Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas, Vestígios de Curandage e Organizadora do Dicionário - Falares Cabocos.

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