Por Floriano Lins
Entre incertezas e revoltas a rotina de pacientes acometidos pelo câncer no Amazonas parece se transformar em uma verdadeira “fila da morte”, como afirma a Agente Comunitária de Saúde, Denizete Rodrigues, há 25 anos servidora da Secretaria Municipal de Saúde de Parintins, a 369 km de Manaus. Denizete luta contra o Câncer há cerca de um ano e seus posicionamentos têm gerado polêmicas por conta da firmeza com que aborda as deficiências na atenção a pacientes que deixam seus municípios, encaminhados para tratamentos na capital do Estado.
Do TFD à falta de medicamentos, passando pela falta de apoio de administrações municipais aos pacientes encaminhados, a ACS lamenta a situação de indigência imposta a quem precisa buscar Tratamento Fora do Domicílio. Denizete diz que já formulou denúncias na imprensa, na ouvidoria da Fundação Centro de Controle de Oncologia do Amazonas (FCecon) e tenta acionar o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado para chamar a atenção à falta de medicamentos e maquinários necessários à demanda de exames e sessões de terapias.
A polemização de Denizete começou quando ela se viu abandonada e sem recursos para fazer o tratamento do câncer, assim como centenas de mulheres e homens transformados em pedintes, na série de “vaquinhas” virtuais, por recursos destinados à compra de medicamentos e pagamentos de exames particulares. Na “vaquinha” organizada obteve êxito e conseguiu comprar as doses de Cisplatina, medicamento que funciona retardando ou parando o crescimento das células, porém a busca por Saúde - direito de todos e dever do Estado-, segundo ela, está longe de pacientes acometidos pelo câncer.
Em nota à redação do Portal, a Fundação Cecon alega que “a falta do medicamento foi em função do não cumprimento do contrato da empresa que venceu a licitação. A mesma não entregou o medicamento, obrigando o órgão a realizar uma nova licitação e, em relação ao tempo de espera, a unidade cumpre a legislação que assegura ao paciente o direito de iniciar o tratamento em até 60 dias, embora na maior parte dos casos seja em prazo menor, alguns em até 10 dias, dependendo da especialidade e da demanda”.
Medicamentos
Denizete disse ao Portal: “Graças a Deus, já tomei as primeiras doses e um amigo doou o restante das doses. Tomei a quinta dose da Cisplatina, que ainda está em falta na CECON. E conversando com uma médica, ela me disse que a Cisplatina há um ano está em falta. A que os pacientes tomam é quando comprada, quando amigos doam ou a sociedade civil se organiza e ajuda um amigo, dois amigos... Enquanto isso, esse sistema precário continua nos matando”, lamenta.
“Quantas mulheres realmente sem condições! Imagina pagar dois mil reais ou mais, dependendo da clínica; é o valor de uma dose de Cisplatina. E isso deixa a gente realmente sem ação. Eu, por exemplo, ainda consigo gritar, publicar alguma coisa, falar com um amigo ou outro... No dia em que estava fazendo exame, conversando com outras mulheres, alguém me perguntou se eu queria fazer uma denúncia. Aí eu denunciei. Já fiz também denúncia na ouvidoria da CECON e até agora não tem nenhuma resposta. Inclusive, estou tentando fazer também denúncia para o Ministério Público, porém, não consegui ainda essa opção; esse tipo de denúncia eu quero fazer no Ministério Público ou da Defensoria Pública”, argumenta.
“Eu só sei que tem muitas mulheres na fila da morte. Isso é triste. Ultimamente consegui ajudar uma amiga com duas doses. Doei as duas doses que estavam além das que eu ia tomar, mas não sei se ela vai ter condições de tomar as quatro, porque ela só tem, de fato, as duas que doei. Isso dói na gente. Deixa a gente indignada”, denuncia.
Saúde entregue à doença
Denizete Rodrigues tem acompanhado as notícias dos preparativos para mais um Festival dos Bois Bumbás de Parintins e se diz indignada: “É muita verba para festival, muita verba pra foguetaria, pra alcoolizar pessoas. A orgia é de acordo com aquilo que os fariseus faziam. E os fariseus continuam matando Jesus, que são os necessitados, as pessoas que não têm voz e nem vez para gritar, para falar pelos seus direitos”, aponta.
“Não sou contra o festival. É a cultura, é o povo. Sou contra o desperdício em algo, em coisas só para despistar o desperdício de verbas. E vem verba para a cultura. E pra saúde, educação vem muito mais... É isso que que me revolta. É como se todo mundo vivesse só de festival”, justifica.
Lembra que “na época do festival, ano passado, foi o tempo que mais eu sofri durante o tratamento. Eu vivia lá no lado daquela usina de oxigênio; fiquei internada o festival todo, esperando passar a festa para tentar resolver minha vida na área da cirurgia. E muita gente não aguentou. Algumas pessoas faleceram nesse período; outras pioraram e até agora estão lutando pra sobreviver. É como se o período do festival não tivesse saúde, não tivesse mais educação; as atenções só se voltam pras festas, mas por trás tem muita gente sofrendo, muita gente adoecida e muita gente que anos e anos, passa festival, entra festival e não consegue resolver a situação. É preciso dar, pelo menos, uma dignidade no final da vida, com atendimento e assistência necessários”.
Terapias
Sobre as terapias exigidas no tratamento, “vou começar a fazer a braquiterapia agora. Fiz só 15 sessões de radioterapia, porque a máquina está quebrada. Há mais de uma semana a gente faz duas, três, quatro, a máquina quebra. É muita gente na fila. As máquinas não descansam, só tem duas máquinas de radioterapia e uma grande quantidade de pessoas precisando todos os dias”.
Denizete também se queixa da “falta de atenção à situação das máquinas de radioterapia, e quimioterapia. Tem muita gente que já morreu; não conseguiu vaga e muita gente também vai morrer porque não consegue nem vai conseguir com as máquinas quebrando. Essa situação é uma tristeza”.
Máquinas não suportam demanda. Reprodução Internet
“A gente pede uma resposta do Governo do Estado: porquê não comprar mais máquinas? As pessoas não têm coragem de denunciar e é muito triste as pessoas sofrerem tanta dor, tanta espera e não terem mais ânimo pra lutar pelo que é direito nosso e dever do Estado”.
“É assim que estão tratando o povo amazonense acometido de câncer. O sistema calado... tudo legal. Enquanto nosso município, Parintins, a única coisa que fornece pelo TFD é a passagem de barco de ida e volta. E quando chegamos aqui, a gente é jogado, não vem ninguém da representação. Não ligam, não fazem nada a nós, cidadãos parintinenses”, cita.
Solidariedade
Segundo a Denunciante, a solidariedade recebida de amigos é o maior incentivo na busca por saúde. “Eu estou tendo muito apoio de comunitárias, pessoas que eu visitava. Choro. Choro de saber quanto eu era importante para essas pessoas. Hoje sei que sou importante pelas ajudas que me dão; são essas pessoas humildes que me ajudam comprar minha medicação. Durante eu estar aqui não me faltou nada, porque amigos me ajudam: professores da faculdade das minhas filhas, meus amigos mais íntimos, pessoas simples, sempre me ajudando. Sou muito grata por contar com essa força. Não estou podendo fazer muita coisa, mas a minha voz ainda ecoa. Ainda estou lúcida. Quando passa a dor, quando ameniza o sofrimento, desabafo com vocês, que são meus amigos. É importante saber que os amigos realmente me ajudam, minha família que me apoia, meu filho, meu marido e minhas filhas”.
Afirma que “se fosse depender desse sistema eu já tinha morrido antes da cirurgia; só Deus sabe e mandou esses Anjos que nos ajudam. É um amigo ajudando o outro, porque o sistema está nos matando, literalmente”.
A solidariedade recebida de amigos é o maior incentivo na busca por saúde. Foto: Reprodução
Em Manaus, Denizete mora no Lar das Marias, abrigo temporário para mulheres do interior do Amazonas em busca de tratamento contra o câncer. “Graças a Deus que tem esse lugar; que têm essas pessoas de bom coração que fundaram esse Lar. Não sei o que seria de mim, principalmente de muitas outras... A gente não tem casa aqui. E se a gente for pagar aluguel, vamos morrer de fome. Aqui vem mulher de todos os lados, até do exterior”.
São mulheres de todos os municípios do Amazonas. “Tem município que eu fico surpresa! Cuida de suas pacientes mesmo aqui no Lar; o município dá condução, dá suporte pra se manter em e fazer o tratamento. E as representantes dos municípios, de vez em quando, vêm aqui, conversam com a direção, preocupadas com seus munícipes. Se precisam de consulta, ligam para representação e a representação se vira, dá um jeito de providenciar os exames.
“Não questiono somente por mim. Graças a Deus, com a ajuda de muitos amigos, estou conseguindo. Precisamos uma resposta coerente, convincente em relação às pessoas que vêm de Parintins fazer tratamento aqui na capital. Porque parece que o TFD é só a passagem. É a única coisa que Parintins dá. Quando a gente liga pra saber sobre uma medicação, um exame, respondem que não trabalham com verba para isso”.
Denizete cita ainda situações em que os pacientes viajam para Manaus: “Tem paciente que precisa viajar em camarote, mas não tem camarote, tem que vir de rede, às vezes com bolsa de colostomia; pacientes que não conseguem andar e são obrigados a viajar de barco; barcos do Pará que passam por Parintins e já vêm lotados”.
Há cerca de uma semana Denizete foi procurada por uma servidora da representação de Parintins em Manaus. “Ela me ligou pra saber como eu estava; disse que não estava sabendo do meu caso. Falei que todo mundo sabe o que está acontecendo comigo. Estou doente desde 2022, quando comecei passar mal. Em Parintins a gente passa por um processo enorme de espera por atendimentos de especialistas. Todas as biópsias são pagas. Pelo SUS não tem condições porque demora muito tempo. Não há condições de ficar esperando as biópsias. O tempo é longo. É a nossa vida que está em jogo.”
FCecon
Na noite de quarta-feira, 30, a Fundação Cecon enviou nota à redação do Portal sobre o processo de atendimentos aos pacientes encaminhados à Capital do Estado. Ente janeiro e março deste ano, 38 novos pacientes foram encaminhados de Parintins para tratamento naquela unidade de saúde.
Leia a nota na íntegra:
Nota
A Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas (FCecon) informa que segue o fluxo de atendimento, em primeira consulta, via Sistema de Regulação. Entre janeiro e março de 2025, 38 pacientes de Parintins foram recebidos para tratamento oncológico no hospital.
Em relação ao tempo de espera, a unidade cumpre a legislação que assegura ao paciente o direito de iniciar o tratamento em até 60 dias, embora na maior parte dos casos seja em prazo menor, alguns em até 10 dias, dependendo da especialidade e da demanda.
Quanto ao medicamento Cisplatina, este já foi adquirido pela Fundação Cecon e tem previsão para entrega pelo fornecedor logo no início de maio. A falta do medicamento foi em função do não cumprimento do contrato da empresa que venceu a licitação. A mesma não entregou o medicamento, obrigando o órgão a realizar uma nova licitação.
Atenciosamente,
SEMSA
Sem comentar os questionamentos em relação à assistência da administração pública aos pacientes encaminhados para Manaus, o Secretário Municipal de Saúde de Parintins, Clerton Rodrigues encaminhou detalhes das normas e dos direitos dos pacientes aos recursos do TFD.
No recorte enviado à reportagem, Clerton afirma que o Tratamento Fora de Domicílio (TFD) é fundamental para pacientes do SUS que precisam de cuidados médicos especializados não disponíveis em sua cidade natal. Aqui estão algumas razões importantes pelas quais o TFD é crucial:
- Acesso a tratamento especializado: O TFD permite que pacientes acessem tratamentos complexos e especializados em outras cidades ou estados, garantindo que recebam os cuidados necessários para sua condição.
- Custeio de despesas: O programa cobre despesas de transporte (aéreo, terrestre ou fluvial), alimentação e hospedagem para o paciente e, quando necessário, para um acompanhante.
- Garantia de atendimento: O TFD assegura que o paciente seja atendido em uma unidade de saúde adequada, com profissionais capacitados e equipamentos necessários para o tratamento.
- Direito garantido por lei: O TFD é um direito garantido pela Portaria SAS/MS nº 55/1999 e pela Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/90 e 8.142/90).
- Importância para a humanização do cuidado: O TFD também destaca a importância da humanização no atendimento ao paciente, enfatizando a necessidade de uma abordagem integral e respeitosa no cuidado à saúde.
Para ter acesso ao TFD, os pacientes precisam:
- Ser usuário do SUS
- Ter esgotado os meios de tratamento no município de origem
- Preencher os requisitos específicos, como distância mínima de 50 km do município de origem e ter um laudo médico que comprove a necessidade do tratamento fora do domicílio.
O TFD é uma ferramenta essencial para garantir o acesso universal e igualitário à saúde, conforme previsto na Constituição Brasileira.