Aldísio Filgueiras*
Os mortos celebram agora
– sob os campos de extermínio
da cidade – a hora que apavora
o sossego sem cautela dos vivos
com a risada de sino dos seus ossos.
Esses destroços risonhos e rotos
lembram muito pouco o descarnado
cinismo dos que beberam o morto
– que piada –, vivos e descarados.
Os mortos veem – através do crivo
antigo das raízes que lhes furam
os olhos – a marcha insana
e sobrevivente dos que apressam
o passo e, mais ligeiros ainda,
quase não tocam os pés nas calçadas,
gritam contra o tempo que não finda
de voar como aves sem repouso
em voo raso sobre cova rasa.
Esses ossos que armaram corpos
de pobres e ricos, sob medida,
não guardam mais ou menos, assim mortos,
qualquer prestígio que tiveram em vida
os pobres, ricos ou remediados:
tudo que eles têm em comum
é que estão muito bem arrumados
uns sobre os outros. Gozo? Nenhum.
Com apartamento de endereço
tardio em quadras e alamedas,
tudo muito estreito, sem apreço,
sem água, luz, o que mais arremeda
e acomoda uma toca de rato,
o morto com agasalho de osso
tem que pagar por esse buraco
e aí, sim, se vê no fundo do poço.
Que tragédia! Além do peso ingrato,
da terra sobre a cara, sem piedade,
suportar sem ai nem ui esse ato
de comédia a que chamam saudade!
Vamos tirar o disfarce dos mantras
e dos salmos, pois o mais podre
dos ricos e o mais rico dos pobres
– ó mundo de patetas e pilantras! –
ainda creem por todo o sempre
manter a pele nobre sobre os ossos.
Este, sim, é o consolo dos tolos.
* Aldísio Filgueiras, compositor, poeta e jornalista