Fátima Guedes*
Entre as memórias da infância, a cafua* sobrevive: o barracão nos fundos do quintal sempre atufalhado* de bregueços* indispensáveis (não tanto pela utilidade, mas pelo valor afetivo presente em cada relíquia). Incrível, estou sempre ali: acariciando restos de infância, vestindo sonhos de rainha, renegando o enferrujado ferro de engomar, evitando o fio da velha peixeira (utilíssima na ticação* de peixes dos puxiruns*); calçando a sete-léguas do Velho Onça*, cascavilhando* a Infância Brasileira*...
Discunforme* saudades da cafua de minha infância!... Porém, é melhor fechá-la, agasalhar a tranca cuidadosamente para evitar ladroagens. Questão de prudência.
E o que se tem? A modernização chegou e silenciou a poética das cafuas que sobrevivem como metáforas nas ousadas viagens de iniciados nas letras. Para as novas gerações, o velho arquivo com nova roupagem, claro, é conhecido como depósito, despensa... Perdera o sentido afetivo. Tais depósitos recendem a condimentos, material de limpeza, venenos... e sempre abarrotados das imposições mercadológicas; vazios, porém, de memórias de vida.
A simbologia dos espaços de armazenamento traz, hoje, em natureza uma codificação classista. Exemplo: caixa preta opõe-se semanticamente à cafua. A inovação nega qualquer sentido prazeroso: criador e criatura acidentam-se no jogo do esconde-esconde; há um medo terrível de abri-la em casos de desastres; em outras palavras: caixa preta é arquivo proibido à apreciação da cidadania, do constitucionalismo democrático, haja vista camuflar podridões, medonhos fantasmas que ameaçam poderes.
Cidadão comum não tem caixa preta, tem cafua, rabo-de-palha, por isso, escancara fácil a porteira quando submetido a averiguações. Comportamento diferente verifica-se no lado que julga e investiga habilidosamente tralhas escondidas entre as misérias das cafuas: dinâmica totalmente contrária à cerca de jurubeba* de proteção aos senhores intocáveis. Basta um simples olhar aos averiguados na CPI da covid... Reflitamos: e se os/as acusados/as fossem zezinhos, manezinhos, manduquinhas e outros/as em condições similares?...
De resto, eis a grande dúvida da massa social sobre o real entendimento e interpretação do conceito de justiça vigente no atual estado democrático brasileiro: será justiça o legalismo institucionalista que negocia deus para privilegiados e o pobre diabo para marginais, marginalizados e desvalidos históricos? Será justiça a ardilosidade inacessível a cidadãos comuns? Será o conjunto de símbolos e títulos hierárquicos a serviço de poderes ditos constituídos? A turma das cafuas entende por Justiça a equidade de direitos; a faculdade de julgar com imparcialidade, conforme Platão anunciara, Não pode haver Justiça sem homens justos. E o Mártir Dom Oscar Romero fora mais além: A justiça que se tem é como as serpente: apenas morde os descalços.
Falares de casa
Atufalhados – do coloquial: repleto; lotado.
Bregueços – o mesmo que coisas velhas, trastes.
Cascavilhando – procurando minuciosamente.
Cerca de jurubeba – figuração popular à proteção de pessoas ou fatos sigilosos. Jurubeba (Solanum pediculatum, espécie nativa espinhosa).
Discunforme – do coloquial parintinês: advérbio de intensidade.
Infância Brasileira – Livro de Conhecimentos Gerais, do ensino fundamental - anos 60 a 70.
Puxiruns – o mesmo que mutirão.
Ticação – ato de retalhar/ticar o lombo dos peixes peixe com facas afiadas no sentido de quebrar as espinhas.
Velho Onça - referência ao senhor Otávio Guedes de Araújo (meu pai). O título advém de suas permanentes peregrinações pelas florestas do interior do Amazonas.
Fátima Guedes é educadora popular e pesquisadora de conhecimentos tradicionais da Amazônia. Licenciada em Letras pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Tem especialização em Estudos Latino-Americanos pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em parceria com a Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF) em Guararema (SP). Uma das fundadoras da Associação de Mulheres de Parintins, da Articulação Parintins Cidadã, da TEIA de Educação Ambiental e Interação em Agrofloresta. Militante da Marcha Mundial das Mulheres (MMM), Articulação Nacional de Movimentos e Práticas de Educação Popular e Saúde (ANEPS). Autora das obras literárias, Ensaios de Rebeldia, Algemas Silenciadas; Organizadora do Dicionário – Falares Cabocos.